quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Falar da vida


Só te posso falar da vida e do que sinto perante ela: as nossas referências vem-nos do confronto entre o rochedo inamovível e a nossa coragem.
Em ti eu vejo as mesmas forças que me movem, a busca que também é a minha, e por isso falar de ti é também falar de mim. És como um espelho.
Agora tu! Que és tu? Eu vejo um coração ardente e apaixonado. Não por este ou por aquele, mas pela vida. Quanto aos que amas, são símbolos. Estão no exterior porque precisas de os ver fora de ti, mas na verdade o que te move és tu própria. É ao encontro de ti ou dessa parte tua, secreta e inacessível mas que é toda a razão para estares viva, que caminhas.
Depois há a luta: e quando te envolves já não sabes parar. Transformas os outros no símbolo do teu amor quando não o são nem podem ser. Só tu és esse símbolo. Só tu, se um dia te alcançares, te poderás deslumbrar.
O teu amigo que é ou foi, senão aquele onde colocaste tudo o que tinhas dentro de ti? Mas foste tu que construíste a relação, que a alimentaste, e por isso agora tens tanta dificuldade em te separares dele(a). É que não te estás a separar dele mas de ti ou daquilo que dentro de ti lhe deste. E deste-lhe o melhor que tinhas, que eras, que és: o amor absoluto!
É de ti ou desse ideal nele materializado que te tens de separar. E isso dói! Porque é como arrancar uma parte da alma. Eu sei! E todavia tens de o fazer. Por ti e por ele, mas sobretudo pela integralidade do amor. Porque o amor é o segredo da tua vida e esse dom tem de ser preservado.

10 Outubro 2006
JC

Verão


Na exaltação das energias do Verão
É fácil perdermo-nos,
Ou ganharmo-nos.

Se aqui estivesses não sei o que aconteceria
Porque o meu corpo anseia pelo teu
A minha alma pela fusão
Com o eterno feminino que dentro de ti existe

Bem vês que perigoso seria se tivesses vindo
Mas não vieste
E assim tudo permanece idêntico ao que construímos:
Essa margem segura
De onde se pode contemplar o mundo
Sem sofrer as dores da vida.

Escolha certeira para quem,
Como eu,
Há muito se demitiu.

Não tenhas pena, meu amor
Afinal é tudo por bem
Mesmo que contra nós
Ou contra o amor,
Seja feito.

21 de Junho 08
JC

Sinais


Em três mulheres
Recuperei esta ideia do eterno feminino.

De repente,
surgido do nada,
Eis o sorriso que só da alma nasce.

Disse-lhes, claro!
Sorriram.

Bem gostaria de saber o que sentiram.
Mas na mulher tudo é ocultação
E mistério.

Maio 2008
JC

auto-retrato


Nem pior
nem melhor do que outros
mas também não igual.

Sou um ser à descoberta do mundo
de mim próprio
daqueles com que me cruzo.

Acredito sobretudo na relação humana
como forma de ir mais longe
até que a barreira da pele ceda
e no outro nos revelemos
ou nos percamos,

tanto faz

2009
JC

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Serenidade ao entardecer

Este momento em que tudo silencia
Dentro e fora do ser
Eternidade por breves instantes surpreendida

10 de Setembro de 2011

Pegadas na areia

De muitas pegadas é feito o caminho que percorremos. Uma parte nossa, outra alheia. Olho para trás através de uns olhos que já não são meus. São de uma criança a quem estas coisas faziam sentido, davam conforto, asseguravam o dia seguinte. Eu sou outra coisa: a testemunha de mim. O observador atento e silencioso do que sinto, experimento, realizo. Somos tantos e tão diversos que é espantoso manter-se a unidade intima. Mas mantem-se nessa memoria que recusa o esquecimento. Ou aceita esquecer, para que uma outra vida mais ampla e disponivel possa acontecer.

26 de Agosto de 2011

O outro cá dentro

Todos os dias me pergunto de onde nos vem esta dificuldade em nos entendermos uns aos outros, uns com os outros.
Como se os outros fossem terra estranha e desconhecida onde todas as referencias se perdessem.
Sabendo nós que não é assim, que é precisamente ao contrário, que é com o outro (ou através dele) que o que somos se explica.
E no entanto postos perante ele recuamos. Talvez porque com o outro começa a grande incerteza.
E no entanto temos o amor como guia, se confiarmos. Mas para confiar é preciso amar, e amar é dificil.
Mais uma vez porque no outro nos reflectimos e o que nele vemos é o que somos.
E o que somos é a falta de confiança. Não no outro mas na parte nossa que atraves dele se exprime.

5 de Agosto de 11

A busca

Tu andas à procura de um companheiro
Eu ando à procura de uma amiga.
Às tantas, a tua ideia de companheiro
e a minha ideia de amiga,
são a mesma ideia
Ou pelo menos a mesma necessidade.
Uma coisa que vem do fundo da alma
Um grito (é excessivo),
Uma suplica
Na verdade o eco de uma ausência.
Eu chamo-lhe a ausência do amor, o eco da felicidade.
Há diferenças, é certo
A mais evidente das quais é tu saberes o que queres desse teu companheiro
Já eu não, eu sinto apenas
E o que sinto é a ausência daquela amiga capaz de escutar a alma
Não tem rosto, não sei sequer se é possível
Sei apenas que sem ela a vida me parece vazia
E viver, o absurdo de consentir na soma dos dias sem propósito.

1 de Setembro de 2011

O gesto

Do amor só conheço o gesto que me aproxima de alguns, não necessariamente aqueles que escolheria, mas aqueles que a vida quer. Porque os quer a eles, não sei. Tambem não pergunto. Basta-me o toque dos dedos sobre a pele sensivel e o acordar na manha clara.

1 de Setembro de 2011

Pensar no amor

Gosto de pensar no amor como um gesto sem retorno. Dá-se e é para sempre. Do outro lado até podem não dar conta. Não importa.

7 de Setembro de 11

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Há depois a vida


Há depois a vida.
Os outros do outro lado do espelho.
As certezas.
Mas não há certezas.
Nem dúvidas.
Há o olhar em frente e não desistir.

Somos este gesto que no encontro com os outros se define,
ganha contornos,
resiste à sua própria erosão.
Tudo porque a vida quer,
manda viver,
manda existir,
e nós queremos também.
O que queremos, é que não sabemos.
Muito menos porquê.
Não que importe.

É a luz que define o gesto.
O som, a palavra.
Os outros, a necessidade própria ou alheia.
Deus, esta mania em resistirmos.
A matéria, a ideia que dela temos,
os motivos porque insistimos.

Mas depois a luz passa-nos ao lado,
vive uma vida própria da qual nada sabemos.
Os outros são eternamente eles.
Deus, o simulacro da nossa veracidade,
a justificação dos nossos sentimentos.
A matéria, nada,
nada que justifique estar cá, insistir.

É o medo que nos mantém,
que não nos deixa partir.
O medo de sabermos.
O medo incontornável da vacuidade do outro lado da porta,
na verdade da vida.

Assistimos aos nossos enredos,
ao frenesim das nossas vidas,
aos diálogos inconclusivos,
às fugas frenéticas tal o seu desassossego.
Assistimos àquela parte nossa que não se deixa convencer, enredar.
Que quer manter-se atenta.
Mas a atenção aos outros é um reflexo, não uma realidade.
Um espelho, não uma matéria concreta.
Os outros, a mentira de terem sido importantes.

Só era preciso desistir.
Ir de um lado ao outro da vida sabendo que só se viaja na alma.
Amar tudo e todos,
porque na paródia do amor o que somos é importante,
ganha veracidade.
Acima de tudo, estar disponível.
Seja para a dor seja para a alegria.
Nossa ou alheia.
Dos milhões que se cruzam connosco,
ou os outros, sombras suas, ideias nossas, pressentimentos.
Sabendo sempre que tudo isto é a fingir.
Que são cenários ininterruptos de verdades por inventar.
Mas que tem a importância de neles acreditarmos.
Já que o mundo é feito destas crenças.

Estamos sós.
Completamente.
Os outros são a ideia de que existem,
de que foram importantes,
de que sem eles não saberíamos viver,
não teríamos motivos.
Os outros são os motivos.
A lógica de uma vida que nunca a teve.
Nem dela precisou para existir.
Nós, sim.

Depois o amor.
Necessariamente pelos outros.
Rostos previsíveis, os do nosso afecto.
Na verdade preferências.
Gostos estéticos ou intelectuais.
Combinações de luz e cor, paisagens sobretudo.
Nada real, uma vez mais.
Mas o amor resiste.

Que somos senão a ideia que de nós temos.
Os outros, o mesmo.
Do outro lado da rua,
numa rua paralela a esta,
outro que não eu me descreve a mim, descrevendo-o eu.
Assim nos mantemos ambos.

O mundo o mesmo.
Os outros, igualmente.
Tudo o que suporta a vida,
uma consciência larvar incapaz de desistir,
de se ver ao espelho.
Logo de desmontar o enredo,
de superar o labirinto.

Aquele que me descreve não me vê.
Tampouco o vejo eu.
O mundo do outro lado da rua é um mundo repetitivo.
Na verdade, é o reflexo invertido deste.
É a sua sombra.
No seu coração, como no meu,
ganha importância o acto de sonhar a vida,
de lhe entregarmos a nossa fé.
Entender o processo seria transcender.
Transcender seria desistir.
Graças a deus, nenhum de nós o fará nunca.

Assim se mantém o enigma.
Inalterável, impossível de entender.
Desculpamo-nos com deus:
terá sido ele o primeiro a imaginar tudo, a construir a aparência.
Mas se esta resiste é porque estamos de acordo,
queremos a vida assim.
Talvez não todos.
Haverá aqueles que gostariam de lhe encontrar uns pozinhos
de mistério ou de verdade.
Mas são poucos e por isso não contam.
A maioria prefere o mundo concreto,
a paisagem repetitiva,
os erros do passado reflectidos no presente
por sua vez no futuro.
A maioria prefere somar a inventar.

Na verdade, estamos de acordo.
O mundo é redondo ou quadrado, tanto faz.
Fomos à Lua.
Exploramos o espaço dentro e fora do ser, concluímos.
Sabemos coisas que ninguém antes sabia, estamos orgulhosos.
Este orgulho é perigoso.
Na verdade, é um beco sem saída.
Mas as cidades são agora becos,
as sociedades outros ainda,
a vida de cada um o seu prolongamento,
e ninguém se importa.
Mais uma vez, dar importância era desmontar.
E desmontar era assumir.
O que?
A impostura.

Melhor remar sempre em frente.
Ter os olhos no horizonte,
os ouvidos desatentos.
Afinal não remamos sós.
A nosso lado, a perder de vista,
milhões remam também.
Pretendem o mesmo: atingir o limite.
Mas o limite nunca se atinge.
A verticalidade da matéria resiste aos assaltos da inteligência.
O abismo, só na loucura faz sentido, só aí existe.
Nós o mesmo.
Mas é tão raro darmos conta.
Abrirmos mão das nossas certezas.
Deixarmo-nos ir.

Haveria o amor,
mas o amor é agora uma lógica,
uma repetição de si próprio:
por isso uma falsidade,
uma impossibilidade.
E nós com ele.
Haveria deus,
mas deus é agora um mito.
Nós nem isso somos:
apenas a razão para não desistirmos.
Apenas o medo do outro lado da esquina
que deita para a rua em frente.
E o outro que sem saber de mim, nem eu dele, me permite a existência.

Setúbal, 3 de Maio 2010
JC

Enredos meus


Estranho esta vida feita de ausências tuas,
de enredos meus,
ideias alheias ao que um dia fomos.
Tu de um lado e eu do outro,
na ignorância de haver fim.
Mas havia.
Agora é a nostalgia do teu rosto.
Eterna como o desejo.

Pudesse eu transpor este abismo
e resgatar-te das minhas sombras,
realidade serias e eu contigo de braço dado
como naqueles passeios ao fim da tarde
lá na aldeia com gente a cumprimentar
na verdade a tentar perceber o que fazíamos ali.
Fazíamos o amor.
Não que o soubéssemos então.
Hoje sim,
mas porque partiste.

Como os bichos, lembro-me de te ouvir dizer.
Se ficarmos aqui seremos como os bichos,
incapazes de outro sentir que não seja o desejo da carne
a ansiedade do prazer.
E depois nada.
Nada que recorde o tempo de outrora,
a ideia de termos existido.

Mas logo a seguir fomos noite dentro
em direcção ao quarto à cama ao prazer.
Tu descomposta na arbitrariedade de te dares.
Eu, incerto de te ter.
Não que a carne nos fosse estranha
ou os seus enredos.
Não era.
Mas partilhar o amor é inventar outras terras
outros costumes outras gentes.
Um tempo distinto em que nascer e morrer.

Nunca o amor contigo me pareceu estranho,
tal era a certeza de entre nós haver um mundo a partilhar,
a descobrir.
Houve depois a precariedade,
os caminhos que nunca se sabia como terminariam.
Mas eram os caminhos dos outros.
Nós passávamos ao lado.
Depois já não.
A tua doença, a minha desilusão.
Impossível conciliar,
regressar ao ponto de origem,
recuperar o milagre.

Sempre dos outros, todavia.

Amarna, 29 de Maio de 2010
JC

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Amar


Amar é transcender os limites da carne a quem as asas ainda não nasceram.

Ou nasceram e não demos conta.

Dezembro 2004
JC

Não estamos sós


Não estamos sós. Em redor, tudo e todos a tentar erguer um muro à sombra do qual viver e morrer. O problema é não estarmos sós. E depois ter de escolher entre a solidão com outros ou sem eles. Mas sem eles é ainda com os seus reflexos dentro de nós.

Dezembro 2004
JC

Bruma


Mais não sabemos que erguer castelos inexistentes e palácios feitos de bruma. E depois sonhar com a princesa que, vinda do outro lado do nada, nos acorde desta luz e sombra conjugadas. Mas os castelos são o nosso receio, os palácios a imaginação que não cabe no redil da razão, e as princesas os passos a custo dados até esse limite ignorado que nos separa dos outros e de Deus.

Dezembro 2004
JC

A luz


Somos mais do que vemos, sendo o que vemos mais do que imaginar podemos, e isto mais ainda do que outros, vindos antes a abrir caminho, imaginaram de si próprios e do mundo. Tudo cresce mesmo quando decresce, porque decrescer é ainda experimentar. E o mundo sedimenta-se, camada após camada, até se tornar um altar onde a luz tome conta de tudo. Então a obra pode ser partilhada e cada parte realizar-se amplamente. E isto é a ceia que ainda não foi dada, mesmo que Cristo se tenha oferecido em sacrifício, dizendo-nos qual o caminho.

Dezembro 2004
JC

O ser


Da dor à verdade que dista? Nada ou só esta ausência de ser. Mas o ser é e está para lá da vida. É preciso pormo-nos de lado e observar o que fazemos, mas também é preciso estar lá e pouco a pouco ganhar as asas que nos fazem livres. Muitas coisas são essenciais ao ser, e umas fazemos e outras não. Mas o ser permanece coeso.

Dezembro 2004
JC

Cada dia


Que fazer da vida senão somar um passo cada dia. E depois de tudo se saber ou adivinhar, dar isso ao mundo, para que os passos de todos sejam mais, sempre mais. Até não haver passos para dar mas apenas Deus dentro do homem e o homem consciente disso.

Dezembro 2004
JC

A dor


Na dor dos outros remimos a nossa por existirmos separados deles. E eles, se nos acolherem, transcendem a própria. Até só restar a obra por fazer e o homem por consciencializar quem é e ao que veio.

Dezembro 2004
JC

A ponte


Entre o homem e a sombra a ponte que é Deus, a palavra que se assume transcendência se for dada ao mundo, ou imanência se ficar restrita. E o coração oscila entre dar-se e retrair-se, em ser dos outros e perder-se neles, ou ficar preso na ideia de uma serenidade possível.

Dezembro 2004
JC

Imaginação


Que sabemos do que somos senão o que vamos erguendo a esforço dos braços e tentativas da imaginação? E se a obra não termina nunca, é porque o ser é sempre maior do que imaginar podemos. Começa em Deus e nele acaba, ou nem isso: porque Deus também é uma obra que se realiza todos os dias.

Dezembro 2004
JC

Sinais


Muitos sinais houve já. Uns vistos outros ignorados. Porque? Porque nem tudo convém saber. Há obras que só são possíveis porque os obreiros ignoram o dia seguinte e o preço a pagar para lá chegar. Assim vão, quais cordeiros, ao encontro do altar. E o altar sacrifica-os e eles redimem-se. Mas se soubessem talvez não fossem e a remissão ficaria adiada. Ora o importante é a remissão: sacrificar é apenas mudar os olhos de um lado para o outro. E antes não se sabia e agora sabe-se. Que mudou? Mudou o ser e com ele o mundo. E isto vale a pena.

Dezembro 2004
JC

O outro


O outro será eternamente ele se não estender a mão ao encontro do segredo. E nós o mesmo. É preciso caminhar noite dentro sem outro consolo que os passos dados e o caminho percorrido. Não em nome de uma descoberta que é sempre tardia ou inexistente, mas porque não sabemos fazer outra coisa, nem vemos no mundo algo mais que valha a pena.

Dezembro 2004
JC

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Partilhar



Eu sou como a árvore que entrega os seus frutos. Eu simplesmente dou. Se aqueles a quem me dou merecem esse fruto, o seu prazer e o meu são imensos. Se o não merecem o seu prazer é proporcional ao seu merecimento mas o meu continua igual ao que sou. Porque eu sou uma árvore que dá os seus frutos a quem os quer sem perguntar a quem estende a mão: tu és digno de colher? E mesmo que me respondesse, que faria eu com a sua resposta. Recusava-lhe os meus frutos por ser menos digno. Com que direito. A árvore dá da si. As criaturas estendem a mão e colhem. É a troca da vida. É a troca possível. Mais do que isto era entrar no jogo do merecimento, que é uma regra do homem para decidir quem tem direito a quanto e ao quê. Jogo que alguns homens acreditam justo e por isso o mantêm como a regra das suas vidas. Já a arvore continua a dar de si e os seus frutos alimentam o justo e o injusto. São duas medidas, cada uma com a sua veracidade.

2 de Julho de 11
JC

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O lugar do amor


Sonhar ofusca.
Sonhar repetidamente com o amor torna-o possível.
E não é. Nunca foi.
O outro foi sempre um estranho.
Mundos distintos que só na palavra amor parecem coincidir.
Pois bem, não coincidem.
O motivo é a distancia intima.
No fundo, a estranheza.
O outro é sempre o muro intransponível.
O amor que lhe temos,
a absoluta incerteza.

Porque lho temos é que dá que pensar.
Mas a lógica do amor não é a da vida.
É outra coisa, é um murmúrio cá dentro.
Depois, a tentação é sempre o outro.
Toca-lo, o desafio.
Não por ele, todavia, mas pela parte nossa que só com ele é possível.
Alcançá-la, recuperá-la ao abismo, a suprema tentação.
O desejo.

Que busca a alma nestes encontros fortuitos?
O outro dentro de si, certamente.
O outro, porque com o outro algo renasce,
a vida torna-se de novo possível.
Também o espelho, pela mesma razão.
Por fim a lógica da partilha.
Sentir uns lábios doces é recuperar o milagre do amor,
abraça-lo é regressar ao paraíso.
Tão simples e tão estranho este mistério.
E só o outro o torna possível.

Esta noite,
saída das sombras da memoria, Euridice
o seu amor ausente de repente presente,
os seus lábios de novo vivos, quentes, sedosos como veludo.
De onde me veio esta ideia de a ter?
Porque caminhos estranhos à vida, alheios ao prazer, nos tocamos?
Afinal entre nós nunca houve mais que palavras minhas, gestos seus.
Um mundo de diferenças. Assumido.

Hoje não.
De repente éramos os amantes que nunca fomos.
Como se os sonhos fossem uma vida à parte,
um lugar de encontros para gente que deste lado desistiu.
Não por querer, mas por ter sido assim.

A Euridice de João não é a do mundo.
São realidades independentes.
Se coincidiram esta noite
foi porque a alma transpôs o abismo
e tornou real a quimera.
E no entanto, nos braços da amiga,
João recuperou a ideia de ser feliz.
Foi feliz enquanto o sonhou durou.
E acordado para a realidade da ausência,
algo desse sonho veio com ele, está agora aqui.

Quantos somos e em que realidades paralelas existimos?
Os outros o mesmo.
A única verdade da vida é a omnipotência de deus,
a sua transcendência.
Por inerência, a nossa, parte sua,
realidade que fez existir para sentir do lado de cá
aquilo que o amor é com outros.
E que só com eles se torna possível.
Mesmo que impossível, ou sobretudo então.

Terá sido a impossibilidade de amar Euridice que a trouxe de novo,
desta vez real no amor que João lhe teve
que porventura lhe terá ainda?
Trouxe-a ou não a trouxe.
Talvez o lugar destes encontros seja o lugar do amor,
não um lugar no espaço ou no tempo, mas no sentimento.
Sendo o sentimento a razão do encontro.
A sua finalidade.

Setúbal, 14 de Março de 2011
JC

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Cem eras passadas



Ainda hoje
Cem eras passadas
Pago o preço
Do teu corpo virgem
Entre as minhas mãos
Espantadas

JC
Lisboa, 1970

Junto ao ouvido



Digo-te junto ao ouvido
Um pássaro
É mais do que ninho
Do que penas do que vento
Um pássaro
É sempre promessa
Mesmo impossivel

JC
Lisboa, 1970


O teu corpo é perfume
Flor que amo deslumbrado

JC
Lisboa, 1970


És bom, dizias
Mas esqueceste, esquecemos
Cada homem só tem para partilhar
Um horizonte de cidades
Bombardeadas

JC
Lisboa, 1970

O amor



O amor não basta
Disseste-o, salvo erro
Pergunto
Que nos resta então
Talvez o silencio, dirás
Talvez o chão

JC
Lisboa, 1970

A menina



Era uma menina
De olhos dourados
A ela entreguei o coração
Com muitos gritos
E alguma resignação
Ela tinha fome e comeu-o
Ainda lhe disse
Não é de comer
Mas ela não entendeu
O estomago fala mais alto
Que a imaginação

JC
Lisboa, 1970

Passar das águas



Um rio passa
Deixai-me passar com ele
Não quero mais nada
Senão olhar e vê-lo
Passando belo
E tão sereno
Que nem dá por mim

JC
Lisboa, 1970

A tarde cai



A tarde cai
Os risos emudecem
Desperta coração
Neste instante
Toda a saudade é tua
E não acabar o que sinto
Na tarde
Que não perdura

JC
Lisboa, 1970

Album de retractos



Gosto de ler
O que há muito escrevi
É como folhear
Um album de retractos
Nosso ou da familia
E os rostos passam
E nós passamos com eles
E fecha-se o album
E finda a vida

JC
Lisboa, 1970

Na palma da mão



Ainda não falei dos barcos
Que navegam na palma da mão
Sinto-os partir
Sinto-os chegar
Vou neles
São o meu coração
A procurar

JC
Lisboa, 1970

Palavra



Só a palavra resiste
No terreno escorregadio
Da solidão
A palavra
E algo mais
Que não é grito
Mas comunhão

JC
Lisboa, 1970

Outono




É outono
Não sei de mim
O bosque levou-me
Nele me perdi

JC
Lisboa, 1970

Espelhos somos, sempre



Quem outro ama
Que não um reflexo de si
Quem pode olhar
A vida de frente
Sem que o coração
Não se turve
Do que fita
Mas não vê
Nem sente, aí

JC
Lisboa, 1970


Sentes como a voz treme
Quando entre dois gestos
Se confessa

Não a escutes, é mentira
E mesmo que fosse verdade
De que serviria

JC
Lisboa, 1970

Breve



Não há saída
Tudo é labirinto

JC
Lisboa, 1970

Campo por lavrar


Seria uma estrela
Num céu de Maio
Não fosse o teu corpo
Um campo por lavrar
Não fossem os meus passos
Regato sereno
Perto correndo
Incertos, fatais

Seria uma estrela
Longinqua e só
Não fosse o teu corpo
Sereno sobressalto
Que nas minhas mãos
Quebrou dores
Punhais

Seria não o sendo
E tu
Que mais

Lisboa, 1971
JC

terça-feira, 14 de junho de 2011

A perder de vista



Seria eu mais feliz
Se tivesse alguém a quem segurar na mão
Nos longos passeios sem destino
Sentiria eu que a vida me era mais leve
Se na solidão outra presença ou voz
Que não a minha, existisse
Estaria este meu coração mais apaziguado
Se nas tardes de nostalgia
Outro coração houvesse a seu lado
Capaz de o ouvir

Nunca o saberei
Pois tudo o que amei é agora passado
E tudo o que vivi, já o vivi
Sendo o presente uma espécie de estrada
Curvando sobre uma planície a perder de vista
E é em vão que tento, a meu modo,
Tornar a estrada mais amena
E o horizonte mais humano
E se o tento, é verdade que é por mim
Sendo-o também por muitos outros
Esses imensos outros
Cujos rostos anónimos se misturam
Sem palavras nem forma de as dizerem
Tão vasta é a sua solidão
E tão profundo o seu silencio

11 Junho 2009
JC

A nossa fé


À dor só podemos contrapor a nossa fé. É uma espécie de jogo entre a esperança e o destino e é claro que o destino ganha sempre. Mas o importante não é isso: é a luta! Equanto estamos na luta, absorvidos por ela, esquecemos que não podemos vencer e que a nossa gloria é efémera.

Há vidas que mais não foram que esta luta incessante para manterem um afecto, um rosto, uma margem, que sem essa esperança, logo se extinguiria.

Todas as vidas, são vidas contra o destino, realizam-se à margem do rio, e na verdade lutam contra forças inamovíveis. Mas que importa? Mesmo sabendo-o, não desistimos.

Talvez isto que te digo, não o entendas ainda. É natural. A tua fé é maior do que tudo. A tua esperança é o motor da tua vida e assim deve ser sempre.

Mas um dia há-de vir a visão do destino e perante ela é que terás de decidir: contra ele ou contra ti. E essa decisão é tudo o que importa fazer.

Eu fui e vou, contra o rio. Por isso faço coisas que são desafios e pago o preço que outros não assumem. É a minha opção, é a minha esperança, é o que me mantém vivo!

10 Outubro 2006
JC

Sair do carrossel



Nestes raros momentos de consciência acordada o mundo detém-se do lado de fora, do lado de dentro, como se tropeçasse e nós com ele. Então interrompe-se a marcha do tempo e a vida suspende o seu voo.
Depois, depois as árvores fazem sentido, a terra faz sentido, o vento e o mar também. Mas as pessoas não fazem sentido, e falar e falar e falar à procura de algo que aproxime, menos sentido faz.

Acordar é sempre sair do carrossel. Sair do carrossel é o começo de todos os perigos

Setubal, 2010
JC

O mundos dos outros


O mundo dos outros está-nos tão vedado e inacessível como o nosso para eles. E se comunicamos, é no limite da dor ou do amor que comunicamos.

Não com eles ainda, mas com algo que dentro deles e dentro de nós estende a mão sobre o abismo e por breves instantes se toca.

A isto nós chamamos redenção ou milagre ou amor. Mas sendo tudo isto é outra coisa: é um sinal do que é possível ou impossível, ao ser.

Setubal, 2009
JC

Como gatos


Nada é como parece
E no entanto
Espojados ao sol como gatos
Somos momentaneamente felizes
Porque inconscientes

É então preciso regressar
A este estado anterior à razão
Onde a pedra e o coração
Não se distinguiam

E recusar a promessa do paraíso

4 Abril de 08
JC

Ao fim da tarde


Vejo-me algures num jardim
onde as rosas existem.

Sento-me à beira de um caminho
que sei não levar a sitio algum,
excepto ao despojamento.

Olho e estou só,
só para dizer o indizível
e para o tornar mais ameno.

Partilho a alma dizendo-o:

As rosas,
o jardim ao fim da tarde,
a arvore que deita sobre o caminho,
o banco de madeira por baixo,
e eu e vós,
juntos na alma que se quis dar ao mundo,
que o amou
e vos amou.

É esse o segredo!

Amarna, 2004
JC

O sol inundou tudo


O sol inundou tudo:
o mundo lá de fora,
o mundo cá de dentro.
E de repente,
como acontece sempre,
esse mundo tenebroso
feito de memórias e tristezas inúteis,
cedeu lugar a outro feito de certezas
e objectos puros.
Que bom poder passar a mão
pela simplicidade da chávena
e sorver a goles curtos
este chá que me lembra vidas
onde fui mais simples
e por isso mais feliz.

Setúbal, 2010
JC

Amanhece


Amanhece e a luz torna tudo banal.
Afinal as palavras não resistem
a um simples sol que se ergue todos os dias,
comezinho, igual a si mesmo.
Ou talvez esta necessidade
de olhar o mundo à transparência
e de lhe perceber os significados invisíveis,
que afinal talvez não existam
excepto em imaginações exaltadas
e absurdas como a minha,
tenha encontrado o seu momento de rotura,
e descanse agora,
para que eu me detenha.

Setúbal, 2011
JC

Imagem


A tua imagem esquece
mais um pouco e serás sombra
que nestas águas amanhece serena
como tudo é pouco
vão é todo o sentimento
a tristeza de antes como senti-la
o vazio que foi onde paira inútil
que sou hoje
um pouco de ti que tanto fomos
meia sombra sobre a vida
que esquecida
já não deslumbra
nem magoa

Janeiro de 11
JC

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Amar


Amar é consentir a alguem
Uma importancia que ninguem tem
Ou tem-na, porque o queremos assim

Janeiro 2011
JC

Ao compasso do coração


No meu saco de conforto relativo
A vida tem a verdade de ser possivel
De não ter surpresas
Nem interessar que as tenha
Tanto mais que se as tivesse
Nada mudaria, nem eu
Olharia o mundo com olhos diferentes?
Duvido!
Faria coisas que não faço?
Não acredito!
Seria diferente do que sou?
Sei lá eu o que sou!
Sei apenas que respiro ao compasso do coração
E caminho no mundo sem olhar para trás
Talvez porque atrás de mim
Só os passaros as arvores e as nuvens desfilem
E sabê-lo basta-me para me fazer feliz

Janeiro de 11
JC

quinta-feira, 9 de junho de 2011

As asas da liberdade


Este corpo com seu peso,
suas amarguras suas dores e cansaços,
a amarrar à terra uma alma que vai ganhando
até sem dar conta, as asas da liberdade.
E no entanto é tudo uma incerteza
As dores que temos,
as que vivemos,
foram nossas, não nos pertenceram
são passado, são presente
são de alguém a quem amando excessivamente
fizemos nossas as suas sem dar conta.
Como ter a certeza de alguma coisa
como distinguir dentro e fora do ser
se nem deus se distingue da criatura.
Somos um mundo de sensações
sem fronteiras a limitar o que sentimos
Outros, com outros misturados
nós, com eles, o mesmo
do lado de fora, mas também do lado de dentro
incertos de saber onde começamos ou terminamos
Talvez nem importe sabe-lo
e baste vive-lo como quem respira

5 de Junho de 11
JC

Marés da alma


De frente para o meu vale tranquilo,
Regresso a não sei que tempo ou realidade.
Outros risos ecoaram aqui.
Outros rostos por cá andaram e partiram
Alguns amaram-se perdidamente
Outros negaram-se ao amor
Tiveram medo
Houve deslumbramentos
E houve desilusões profundas
Aconteceram extases
Mas tambem tristezas sem fim
Daquelas que matam tudo cá dentro
Sinto-o!

São as marés da vida
Os nossos voos a rasar o infinito
Tudo por amor
Senão aos outros
Ao que pelo amor sentimos
Imaginamos, queremos
Porque sem amor é um vazio
Impossivel de viver

4 de Junho de 11
JC

às voltas com o amor

O que é o amor? Uma ideia, um modo de sentir, um sentimento sobre alguem? Ou uma forma de viver, de contagiar outros, de os chamar pelos nomes, de os fazer sentirem-se eles próprios o amor?

Uma experiencia permanente, uma incerteza total, uma entrega, uma rendição ao outro do lado de fora mas sobretudo ao outro do lado de dentro, fazendo-os comunicar, permitindo que se tornem um.

Então o milagre acontece, o amor acontece, a vida acontece, e é a maravilha da felicidade. Uma felicidade não calculada, não pensada, não previsivel. Na verdade uma surpresa absoluta, uma tempestade num dia calmo, um rio que de repente sai do leito, invade as terras e as terras recebem as águas e dão fruto.

A felicidade é o sinal inequivoco do amor, é a resposta que anula todas as incertezas. É a propria certeza.

3 de Junho de 11
JC

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Ao ritmo do coração


Em tudo vejo a mão de deus
A logica da felicidade
Há depois os outros
E a dificuldade
Mas é circunstancial
Como as marés
Vai e vem
Ao compasso das estrelas
Ao ritmo do coração

18 de Março de 2011
JC

Do lado de fora


Estes carros que passam na avenida lembram-me os comboios de outrora com as pessoas lá dentro vestidas de domingo cheirando a água de colonia sem mistério.

Eles, cabelos empastados de brilhantina elas, de repente belas outras e diferentes. E eu sentado a vê-los passar em parte conivente porque a alma comove-se em parte indiferente porque aquela gente era outra gente e eu um ser distinto.

Sou ainda assim continuo do lado de fora das vidas que roçam a minha? O drama alheio é deles, soube-o sempre, o meu vivo-o à distancia de o sentir.

Mais do que isso era ser como deus na sua relação distante com o mundo. Mas eu não sou deus e se o fosse faria as coisas de outra maneira.

Misturava as cores fazendo-as indistintas os seres, porque afinal são todos iguais, as palavras porque dizer uma é dizer todas.

Quanto à alma deixava-a longe lá no firmamento para ninguem lhe poder tocar. Talvez assim fossemos felizes como os gatos e belos como as flores.

4 de Abril de 11
JC