quarta-feira, 3 de agosto de 2011
Há depois a vida
Há depois a vida.
Os outros do outro lado do espelho.
As certezas.
Mas não há certezas.
Nem dúvidas.
Há o olhar em frente e não desistir.
Somos este gesto que no encontro com os outros se define,
ganha contornos,
resiste à sua própria erosão.
Tudo porque a vida quer,
manda viver,
manda existir,
e nós queremos também.
O que queremos, é que não sabemos.
Muito menos porquê.
Não que importe.
É a luz que define o gesto.
O som, a palavra.
Os outros, a necessidade própria ou alheia.
Deus, esta mania em resistirmos.
A matéria, a ideia que dela temos,
os motivos porque insistimos.
Mas depois a luz passa-nos ao lado,
vive uma vida própria da qual nada sabemos.
Os outros são eternamente eles.
Deus, o simulacro da nossa veracidade,
a justificação dos nossos sentimentos.
A matéria, nada,
nada que justifique estar cá, insistir.
É o medo que nos mantém,
que não nos deixa partir.
O medo de sabermos.
O medo incontornável da vacuidade do outro lado da porta,
na verdade da vida.
Assistimos aos nossos enredos,
ao frenesim das nossas vidas,
aos diálogos inconclusivos,
às fugas frenéticas tal o seu desassossego.
Assistimos àquela parte nossa que não se deixa convencer, enredar.
Que quer manter-se atenta.
Mas a atenção aos outros é um reflexo, não uma realidade.
Um espelho, não uma matéria concreta.
Os outros, a mentira de terem sido importantes.
Só era preciso desistir.
Ir de um lado ao outro da vida sabendo que só se viaja na alma.
Amar tudo e todos,
porque na paródia do amor o que somos é importante,
ganha veracidade.
Acima de tudo, estar disponível.
Seja para a dor seja para a alegria.
Nossa ou alheia.
Dos milhões que se cruzam connosco,
ou os outros, sombras suas, ideias nossas, pressentimentos.
Sabendo sempre que tudo isto é a fingir.
Que são cenários ininterruptos de verdades por inventar.
Mas que tem a importância de neles acreditarmos.
Já que o mundo é feito destas crenças.
Estamos sós.
Completamente.
Os outros são a ideia de que existem,
de que foram importantes,
de que sem eles não saberíamos viver,
não teríamos motivos.
Os outros são os motivos.
A lógica de uma vida que nunca a teve.
Nem dela precisou para existir.
Nós, sim.
Depois o amor.
Necessariamente pelos outros.
Rostos previsíveis, os do nosso afecto.
Na verdade preferências.
Gostos estéticos ou intelectuais.
Combinações de luz e cor, paisagens sobretudo.
Nada real, uma vez mais.
Mas o amor resiste.
Que somos senão a ideia que de nós temos.
Os outros, o mesmo.
Do outro lado da rua,
numa rua paralela a esta,
outro que não eu me descreve a mim, descrevendo-o eu.
Assim nos mantemos ambos.
O mundo o mesmo.
Os outros, igualmente.
Tudo o que suporta a vida,
uma consciência larvar incapaz de desistir,
de se ver ao espelho.
Logo de desmontar o enredo,
de superar o labirinto.
Aquele que me descreve não me vê.
Tampouco o vejo eu.
O mundo do outro lado da rua é um mundo repetitivo.
Na verdade, é o reflexo invertido deste.
É a sua sombra.
No seu coração, como no meu,
ganha importância o acto de sonhar a vida,
de lhe entregarmos a nossa fé.
Entender o processo seria transcender.
Transcender seria desistir.
Graças a deus, nenhum de nós o fará nunca.
Assim se mantém o enigma.
Inalterável, impossível de entender.
Desculpamo-nos com deus:
terá sido ele o primeiro a imaginar tudo, a construir a aparência.
Mas se esta resiste é porque estamos de acordo,
queremos a vida assim.
Talvez não todos.
Haverá aqueles que gostariam de lhe encontrar uns pozinhos
de mistério ou de verdade.
Mas são poucos e por isso não contam.
A maioria prefere o mundo concreto,
a paisagem repetitiva,
os erros do passado reflectidos no presente
por sua vez no futuro.
A maioria prefere somar a inventar.
Na verdade, estamos de acordo.
O mundo é redondo ou quadrado, tanto faz.
Fomos à Lua.
Exploramos o espaço dentro e fora do ser, concluímos.
Sabemos coisas que ninguém antes sabia, estamos orgulhosos.
Este orgulho é perigoso.
Na verdade, é um beco sem saída.
Mas as cidades são agora becos,
as sociedades outros ainda,
a vida de cada um o seu prolongamento,
e ninguém se importa.
Mais uma vez, dar importância era desmontar.
E desmontar era assumir.
O que?
A impostura.
Melhor remar sempre em frente.
Ter os olhos no horizonte,
os ouvidos desatentos.
Afinal não remamos sós.
A nosso lado, a perder de vista,
milhões remam também.
Pretendem o mesmo: atingir o limite.
Mas o limite nunca se atinge.
A verticalidade da matéria resiste aos assaltos da inteligência.
O abismo, só na loucura faz sentido, só aí existe.
Nós o mesmo.
Mas é tão raro darmos conta.
Abrirmos mão das nossas certezas.
Deixarmo-nos ir.
Haveria o amor,
mas o amor é agora uma lógica,
uma repetição de si próprio:
por isso uma falsidade,
uma impossibilidade.
E nós com ele.
Haveria deus,
mas deus é agora um mito.
Nós nem isso somos:
apenas a razão para não desistirmos.
Apenas o medo do outro lado da esquina
que deita para a rua em frente.
E o outro que sem saber de mim, nem eu dele, me permite a existência.
Setúbal, 3 de Maio 2010
JC
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