sexta-feira, 24 de junho de 2011

Cem eras passadas



Ainda hoje
Cem eras passadas
Pago o preço
Do teu corpo virgem
Entre as minhas mãos
Espantadas

JC
Lisboa, 1970

Junto ao ouvido



Digo-te junto ao ouvido
Um pássaro
É mais do que ninho
Do que penas do que vento
Um pássaro
É sempre promessa
Mesmo impossivel

JC
Lisboa, 1970


O teu corpo é perfume
Flor que amo deslumbrado

JC
Lisboa, 1970


És bom, dizias
Mas esqueceste, esquecemos
Cada homem só tem para partilhar
Um horizonte de cidades
Bombardeadas

JC
Lisboa, 1970

O amor



O amor não basta
Disseste-o, salvo erro
Pergunto
Que nos resta então
Talvez o silencio, dirás
Talvez o chão

JC
Lisboa, 1970

A menina



Era uma menina
De olhos dourados
A ela entreguei o coração
Com muitos gritos
E alguma resignação
Ela tinha fome e comeu-o
Ainda lhe disse
Não é de comer
Mas ela não entendeu
O estomago fala mais alto
Que a imaginação

JC
Lisboa, 1970

Passar das águas



Um rio passa
Deixai-me passar com ele
Não quero mais nada
Senão olhar e vê-lo
Passando belo
E tão sereno
Que nem dá por mim

JC
Lisboa, 1970

A tarde cai



A tarde cai
Os risos emudecem
Desperta coração
Neste instante
Toda a saudade é tua
E não acabar o que sinto
Na tarde
Que não perdura

JC
Lisboa, 1970

Album de retractos



Gosto de ler
O que há muito escrevi
É como folhear
Um album de retractos
Nosso ou da familia
E os rostos passam
E nós passamos com eles
E fecha-se o album
E finda a vida

JC
Lisboa, 1970

Na palma da mão



Ainda não falei dos barcos
Que navegam na palma da mão
Sinto-os partir
Sinto-os chegar
Vou neles
São o meu coração
A procurar

JC
Lisboa, 1970

Palavra



Só a palavra resiste
No terreno escorregadio
Da solidão
A palavra
E algo mais
Que não é grito
Mas comunhão

JC
Lisboa, 1970

Outono




É outono
Não sei de mim
O bosque levou-me
Nele me perdi

JC
Lisboa, 1970

Espelhos somos, sempre



Quem outro ama
Que não um reflexo de si
Quem pode olhar
A vida de frente
Sem que o coração
Não se turve
Do que fita
Mas não vê
Nem sente, aí

JC
Lisboa, 1970


Sentes como a voz treme
Quando entre dois gestos
Se confessa

Não a escutes, é mentira
E mesmo que fosse verdade
De que serviria

JC
Lisboa, 1970

Breve



Não há saída
Tudo é labirinto

JC
Lisboa, 1970

Campo por lavrar


Seria uma estrela
Num céu de Maio
Não fosse o teu corpo
Um campo por lavrar
Não fossem os meus passos
Regato sereno
Perto correndo
Incertos, fatais

Seria uma estrela
Longinqua e só
Não fosse o teu corpo
Sereno sobressalto
Que nas minhas mãos
Quebrou dores
Punhais

Seria não o sendo
E tu
Que mais

Lisboa, 1971
JC

terça-feira, 14 de junho de 2011

A perder de vista



Seria eu mais feliz
Se tivesse alguém a quem segurar na mão
Nos longos passeios sem destino
Sentiria eu que a vida me era mais leve
Se na solidão outra presença ou voz
Que não a minha, existisse
Estaria este meu coração mais apaziguado
Se nas tardes de nostalgia
Outro coração houvesse a seu lado
Capaz de o ouvir

Nunca o saberei
Pois tudo o que amei é agora passado
E tudo o que vivi, já o vivi
Sendo o presente uma espécie de estrada
Curvando sobre uma planície a perder de vista
E é em vão que tento, a meu modo,
Tornar a estrada mais amena
E o horizonte mais humano
E se o tento, é verdade que é por mim
Sendo-o também por muitos outros
Esses imensos outros
Cujos rostos anónimos se misturam
Sem palavras nem forma de as dizerem
Tão vasta é a sua solidão
E tão profundo o seu silencio

11 Junho 2009
JC

A nossa fé


À dor só podemos contrapor a nossa fé. É uma espécie de jogo entre a esperança e o destino e é claro que o destino ganha sempre. Mas o importante não é isso: é a luta! Equanto estamos na luta, absorvidos por ela, esquecemos que não podemos vencer e que a nossa gloria é efémera.

Há vidas que mais não foram que esta luta incessante para manterem um afecto, um rosto, uma margem, que sem essa esperança, logo se extinguiria.

Todas as vidas, são vidas contra o destino, realizam-se à margem do rio, e na verdade lutam contra forças inamovíveis. Mas que importa? Mesmo sabendo-o, não desistimos.

Talvez isto que te digo, não o entendas ainda. É natural. A tua fé é maior do que tudo. A tua esperança é o motor da tua vida e assim deve ser sempre.

Mas um dia há-de vir a visão do destino e perante ela é que terás de decidir: contra ele ou contra ti. E essa decisão é tudo o que importa fazer.

Eu fui e vou, contra o rio. Por isso faço coisas que são desafios e pago o preço que outros não assumem. É a minha opção, é a minha esperança, é o que me mantém vivo!

10 Outubro 2006
JC

Sair do carrossel



Nestes raros momentos de consciência acordada o mundo detém-se do lado de fora, do lado de dentro, como se tropeçasse e nós com ele. Então interrompe-se a marcha do tempo e a vida suspende o seu voo.
Depois, depois as árvores fazem sentido, a terra faz sentido, o vento e o mar também. Mas as pessoas não fazem sentido, e falar e falar e falar à procura de algo que aproxime, menos sentido faz.

Acordar é sempre sair do carrossel. Sair do carrossel é o começo de todos os perigos

Setubal, 2010
JC

O mundos dos outros


O mundo dos outros está-nos tão vedado e inacessível como o nosso para eles. E se comunicamos, é no limite da dor ou do amor que comunicamos.

Não com eles ainda, mas com algo que dentro deles e dentro de nós estende a mão sobre o abismo e por breves instantes se toca.

A isto nós chamamos redenção ou milagre ou amor. Mas sendo tudo isto é outra coisa: é um sinal do que é possível ou impossível, ao ser.

Setubal, 2009
JC

Como gatos


Nada é como parece
E no entanto
Espojados ao sol como gatos
Somos momentaneamente felizes
Porque inconscientes

É então preciso regressar
A este estado anterior à razão
Onde a pedra e o coração
Não se distinguiam

E recusar a promessa do paraíso

4 Abril de 08
JC

Ao fim da tarde


Vejo-me algures num jardim
onde as rosas existem.

Sento-me à beira de um caminho
que sei não levar a sitio algum,
excepto ao despojamento.

Olho e estou só,
só para dizer o indizível
e para o tornar mais ameno.

Partilho a alma dizendo-o:

As rosas,
o jardim ao fim da tarde,
a arvore que deita sobre o caminho,
o banco de madeira por baixo,
e eu e vós,
juntos na alma que se quis dar ao mundo,
que o amou
e vos amou.

É esse o segredo!

Amarna, 2004
JC

O sol inundou tudo


O sol inundou tudo:
o mundo lá de fora,
o mundo cá de dentro.
E de repente,
como acontece sempre,
esse mundo tenebroso
feito de memórias e tristezas inúteis,
cedeu lugar a outro feito de certezas
e objectos puros.
Que bom poder passar a mão
pela simplicidade da chávena
e sorver a goles curtos
este chá que me lembra vidas
onde fui mais simples
e por isso mais feliz.

Setúbal, 2010
JC

Amanhece


Amanhece e a luz torna tudo banal.
Afinal as palavras não resistem
a um simples sol que se ergue todos os dias,
comezinho, igual a si mesmo.
Ou talvez esta necessidade
de olhar o mundo à transparência
e de lhe perceber os significados invisíveis,
que afinal talvez não existam
excepto em imaginações exaltadas
e absurdas como a minha,
tenha encontrado o seu momento de rotura,
e descanse agora,
para que eu me detenha.

Setúbal, 2011
JC

Imagem


A tua imagem esquece
mais um pouco e serás sombra
que nestas águas amanhece serena
como tudo é pouco
vão é todo o sentimento
a tristeza de antes como senti-la
o vazio que foi onde paira inútil
que sou hoje
um pouco de ti que tanto fomos
meia sombra sobre a vida
que esquecida
já não deslumbra
nem magoa

Janeiro de 11
JC

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Amar


Amar é consentir a alguem
Uma importancia que ninguem tem
Ou tem-na, porque o queremos assim

Janeiro 2011
JC

Ao compasso do coração


No meu saco de conforto relativo
A vida tem a verdade de ser possivel
De não ter surpresas
Nem interessar que as tenha
Tanto mais que se as tivesse
Nada mudaria, nem eu
Olharia o mundo com olhos diferentes?
Duvido!
Faria coisas que não faço?
Não acredito!
Seria diferente do que sou?
Sei lá eu o que sou!
Sei apenas que respiro ao compasso do coração
E caminho no mundo sem olhar para trás
Talvez porque atrás de mim
Só os passaros as arvores e as nuvens desfilem
E sabê-lo basta-me para me fazer feliz

Janeiro de 11
JC

quinta-feira, 9 de junho de 2011

As asas da liberdade


Este corpo com seu peso,
suas amarguras suas dores e cansaços,
a amarrar à terra uma alma que vai ganhando
até sem dar conta, as asas da liberdade.
E no entanto é tudo uma incerteza
As dores que temos,
as que vivemos,
foram nossas, não nos pertenceram
são passado, são presente
são de alguém a quem amando excessivamente
fizemos nossas as suas sem dar conta.
Como ter a certeza de alguma coisa
como distinguir dentro e fora do ser
se nem deus se distingue da criatura.
Somos um mundo de sensações
sem fronteiras a limitar o que sentimos
Outros, com outros misturados
nós, com eles, o mesmo
do lado de fora, mas também do lado de dentro
incertos de saber onde começamos ou terminamos
Talvez nem importe sabe-lo
e baste vive-lo como quem respira

5 de Junho de 11
JC

Marés da alma


De frente para o meu vale tranquilo,
Regresso a não sei que tempo ou realidade.
Outros risos ecoaram aqui.
Outros rostos por cá andaram e partiram
Alguns amaram-se perdidamente
Outros negaram-se ao amor
Tiveram medo
Houve deslumbramentos
E houve desilusões profundas
Aconteceram extases
Mas tambem tristezas sem fim
Daquelas que matam tudo cá dentro
Sinto-o!

São as marés da vida
Os nossos voos a rasar o infinito
Tudo por amor
Senão aos outros
Ao que pelo amor sentimos
Imaginamos, queremos
Porque sem amor é um vazio
Impossivel de viver

4 de Junho de 11
JC

às voltas com o amor

O que é o amor? Uma ideia, um modo de sentir, um sentimento sobre alguem? Ou uma forma de viver, de contagiar outros, de os chamar pelos nomes, de os fazer sentirem-se eles próprios o amor?

Uma experiencia permanente, uma incerteza total, uma entrega, uma rendição ao outro do lado de fora mas sobretudo ao outro do lado de dentro, fazendo-os comunicar, permitindo que se tornem um.

Então o milagre acontece, o amor acontece, a vida acontece, e é a maravilha da felicidade. Uma felicidade não calculada, não pensada, não previsivel. Na verdade uma surpresa absoluta, uma tempestade num dia calmo, um rio que de repente sai do leito, invade as terras e as terras recebem as águas e dão fruto.

A felicidade é o sinal inequivoco do amor, é a resposta que anula todas as incertezas. É a propria certeza.

3 de Junho de 11
JC

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Ao ritmo do coração


Em tudo vejo a mão de deus
A logica da felicidade
Há depois os outros
E a dificuldade
Mas é circunstancial
Como as marés
Vai e vem
Ao compasso das estrelas
Ao ritmo do coração

18 de Março de 2011
JC

Do lado de fora


Estes carros que passam na avenida lembram-me os comboios de outrora com as pessoas lá dentro vestidas de domingo cheirando a água de colonia sem mistério.

Eles, cabelos empastados de brilhantina elas, de repente belas outras e diferentes. E eu sentado a vê-los passar em parte conivente porque a alma comove-se em parte indiferente porque aquela gente era outra gente e eu um ser distinto.

Sou ainda assim continuo do lado de fora das vidas que roçam a minha? O drama alheio é deles, soube-o sempre, o meu vivo-o à distancia de o sentir.

Mais do que isso era ser como deus na sua relação distante com o mundo. Mas eu não sou deus e se o fosse faria as coisas de outra maneira.

Misturava as cores fazendo-as indistintas os seres, porque afinal são todos iguais, as palavras porque dizer uma é dizer todas.

Quanto à alma deixava-a longe lá no firmamento para ninguem lhe poder tocar. Talvez assim fossemos felizes como os gatos e belos como as flores.

4 de Abril de 11
JC

O triciclo


De frente para a avenida com o sol a contagiar-me de felicidade de repente sou novamente a criança de outrora lá na aldeia correndo atrás de um triciclo.

Afinal o mundo não é um jogo fechado sobre a ideia que dele temos. É antes um conjunto de memórias umas mais livres que outras de coisas que fizemos ou outros fizeram.

E juntam-se as memorias e a vida parece ganhar sentido. Os outros estão novamente vivos e cada palavra ou riso no seu exacto lugar ocupa de repente a logica perdida.

Tambem a minha aldeia reduzida a sensações que já esqueci se torna por breves instantes a certeza de ter sido feliz e o seu rio, o rio da minha poesia.

6 de Abril de 11
JC

De frente para a avenida


De frente para a avenida deixo a imaginação a vaguear. E de repente regresso a este sentimento de tudo estar bem ainda que nada faça sentido.

Claro que para mim, fazer sentido era o mundo ser lugar de paz, e não é. De concordia, e é uma concordia sempre adiada. De amor, mas na ausencia do outro não vejo que o amor seja possivel.

Esta noite mataram o homem que encarnou o medo colectivo. Quanto a mim, mataram apenas uma testemunha que incomodava.

Mais livres hoje do que ontem, deviamos ter acordado felizes - e não acordamos. Continuamos refens de um futuro que para ninguem existe, seja no resgate de uma economia sem resgate possivel, seja no exorcismo de um medo que se tornou coisa de todos os dias.

E no entanto, cada um a seu modo e eu neste regresso diário à avenida, recuperamos por breves instantes uma transparencia que nos faz iguais a estas arvores e a esta gente que passa.

2 de Maio de 2011
JC

Sem retorno


A morte é o premio que a vida nos dá
Por termos vivido
E se vivemos tão profundamente
Que gastamos a própria vida
Então a morte é uma morte conseguida
Porque sem retorno.
Ficam rostos perdidos na névoa da memória
Que já não existe
Ficam amores e cansaços
Deixados para trás
Como se nunca nos tivessem pertencido
Ficam sobretudo esses outros
Sem os quais a vida não nos fazia sentido.
Restamos nós de frente para o mistério
Face a face sem o negar
Mas também sem o querer entender
Afinal a vida chega e cansa suficientemente.
Os outros são sempre a esperança
Do que podiam ser mas não são
Nós, para eles, o mesmo
Resta o canto dos pássaros na manha clara
O céu despido de milagres
E esta ternura que nos acompanha sempre

É pouco? É muito? Não sei!
Só sei que para mim basta.

15 de Maio de 11
JC

Esta verdade que são os outros


Esta carne cheia de desejo e ternura, capaz de todos os sacrificios, de todas as rendições, sempre por amor, um amor livre e despojado, um amor sem motivo porque sem rosto, já que do outro lado não existe o ser amado mas apenas o amor que lhe temos.
É em nome desse amor que tudo é oferecido. É porque amamos que a vida vale a pena ser vivida.

A carne, a carne é o ponto sensivel. O elo que nos aproxima de deus ou que dele nos afasta. Porque na verdade somos todos um e o mesmo.

30 de Maio de 11
JC

Encontro em Lisboa


Ontem, nos abraços que partilhei, o melhor de mim, a parte que não me pertence verdadeiramente, que é da vida, que é dos outros, deu-se.

Este dar sem esperar algo é que vai fazendo a diferença de uma existencia simultaneamente à parte das outras mas tambem com elas participando deste banquete que a vida criou.

Depois a consciencia de tudo estar bem, de nada existir que se queira alterar, nem de valer a pena faze-lo .

Não que socialmente esteja bem ou que a dor alheia não faça mossa cá dentro, faz. Mas está bem nessa dimensão maior ou mais abrangente, que é a logica do amor que tudo envolve e absolve de culpas ou castigos.

E aí redime-se aquele que ama ou odeia, aquele que agride ou é agredido, aquele que sabe (mas que sabemos nós verdadeiramente) ou aquele que tudo ignora.

Estranhamente tudo está de acordo para promover a felicidade, para a tornar possivel. Basta aderir. Ou fechar os olhos e deixar a alma partir suavemente.

30 de Maio de 11
JC

Felicidade


De onde me vem esta felicidade. De que lugar obscuro me chega o sopro do espirito a transcendencia da carne, esta carne sensivel, esta carne que sofre.

De onde me vem esta certeza de tudo estar bem de nada haver a mais ou a menos na natureza e de tudo se explicar pelo amor. Não o amor, ainda que tambem, das costureirinhas, mas aquele que dando-se completamente não precisa de justificações.

De onde me vem este bafo ardente este vento que varre o deserto antes de se perder em deus de em deus se fundir.

De onde me vem esta felicidade já não dependente de rostos ou certezas, muito menos de amores incertos incertamente vividos antes de tudo se transformar numa dor maior num grito cá dentro, que leva directamente ao teu altar, à minha agonia.

Vem-me de ti. És tu que me sustens. Sem rosto, todos eles são os teus. E são tuas as mãos que toco, se me permito sentir nas minhas outras mãos, que não estas que para ti ergo.

28 de Maio de 11
JC