sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A flor do pessegueiro

Onde quer que tu me leves, minha alma
Que seja por bem
E que um dia, olhando para trás
Eu possa dizer: valeu a pena
Valeu a pena este amor imenso que dei e recebi
Esta dor inevitável
Fruto de tanto que partilhei
Esta descoberta dos outros e de mim
Misturados num voo que ainda hoje perdura
Valeu a pena porque não me furtei
Ao preço do amor
Nem me escondi
E se hoje não os tenho comigo
Foi porque um vento mais forte
Se ergueu a empurrar-nos
Para outros mundos e vidas
Mas estas, enriquecidas de tanta partilha
Serão muito mais do que aquelas que trazíamos
Serão esta alma colectiva
Fruto do nosso amor
Por isso, não é um fim: é um começo
E és tu, oh alma
Flor do pessegueiro batido pelo vento
A abrires as pétalas
Mas foi porque amei sem olhar a custos
Que hoje existes

10 Junho 2009
JC

Deslumbramento

Sempre os outros.
O seu apelo.
A janela que deita para a rua.
A rua que deita para a avenida.
Esta para o mar.
Este, ninguém sabe para onde.
Uma distancia que cega.
Uma dor que não permite viver, mas vive-se.
O apelo dos outros é omnipotente.
A sua realidade, visceral.
Na verdade é deus que o quer, que o diz.
Deus de um lado e o amor do outro.
Ou a saudade de o ter sentido

Os rostos importam. Muito.
O deslumbramento também. Imenso.
O amor por consequência. Sempre.
Tudo somado, é a vertigem ou a morte.
Às vezes ambas.
Porque o coração ergue-se rente a deus e deus acena-lhe.
Então apetece morrer.
Não porque a morte valha a pena
mas porque é uma porta
e do outro lado é o amor.

Nos outros nos ganhamos.
Às vezes, nos perdemos.
Não para eles, todavia, mas para o amor.
Também, não para o amor que lhes temos, isso nunca,
mas para o amor vivido em jeito de liberdade,
nos avanços e recuos do ser.

De repente o impossível.
Tu, deslumbrante de luz, senhora minha.
Novamente o sobressalto.
O coração ansioso.
A alma inquieta.
Sinais que se repetem, iguais ou parecidos.
Do outro lado um olhar distraído.
Desde então a tentação. Não assumida.
Assumi-la seria regressar ao amor.
Um amor possível.

Ora o amor é a impossibilidade.
Do outro lado da mesa o olhar do outro atento ou distraído.
Na verdade não importa.
Atento, é ainda outro, alheio o seu sentir ao que sentimos.
Distraído, é pior.
Como se não existíssemos,
como se não estivéssemos ali.
Mas estamos e damos conta.

O amor é o abismo intransponível.
A palavra por dizer.
A incerteza.
Não da carne alheia, mas da alma.
É a alma que escapa, que desafia,
que torna incertos os sentimentos e absurdas todas as certezas.
Há quem passe de lado.
Há quem se limite ao corpo.
Mas é estranho esse amor.

Setúbal, 6 de Setembro de 2010
JC

Estranha ideia de mim

Nos outros nos encontramos ou perdemos.
Normalmente perdemos.
Porque o outro é sempre o adversário.
Não de nós mas da parte nossa que resiste a dar-se,
que teme a partilha.
O outro é sempre o enigma.
Decifra-lo, a impossibilidade de nos conhecermos.

Abeiro-me de ti
na medida em que me abeiro do que fui contigo,
nos teus braços,
na agonia do teu prazer.
É aí que existo.
Um tempo incerto,
uma incerteza de ter existido.

Impossível compreender este mistério.
Do outro lado da vida é tua a imagem.
Um deus vestido de mulher, carnal, sensível ao prazer.
Manhãs de delírio onde a dois reinventávamos o amor,
sabendo que a morte estava do outro lado da rua
e que o nosso tempo tinha terminado.

Mas depois regressaste com outros rostos.
Outros prazeres ou a sua negação vieram.
Todos consumidos de nostalgia.
Todos breves como o sorriso.
Simulacros do que tínhamos sido.
A sombra no espelho.

Agora não.
Nada de ti pelo menos.
Mas também nada de mim já.
Há o mundo do lado da janela que deita para a rua.
Há os que passam.
Nada de estranho.
Repetição sim, eterna como o tempo.

Às vezes passam namorados.
Raramente, devo dizer.
O amor tornou-se uma coisa estranha, imprevista.
Ou recolheu-se ao sexo, à fuga, à noite.
Tudo caminhos desconhecidos.

Gostaria que passasses do lado de fora da janela.
Ou que me entrasses pela porta dentro mesmo que para agredir.
Mas esquecemos o amor e a partilha.
O outro tornou-se definitivamente ele.
Tu, a recordação de mim.

Amarna, 29 de Maio de 2010
JC

Incertezas

Do outro lado da rua teimo em ver quem lá não está,
nem estará nunca.
Estará, isso sim, quem ignoro que exista.
São pessoas, eu sei.
Na verdade desconhecidos.
Não que algum dia tenham sido, ou pudessem ser, conhecidos.
A menos que abríssemos mão do intimismo,
coisa impensável de resultados imprevisíveis.
Às tantas, surgia-nos de repente a tentação de sermos íntimos.
Como esses romances de cordel
que andam por aí a desmontar lares muito vistos.
Na verdade gastos.
E por isso, sim, é um bem que lhes fazem.

Não que as mães de família o queiram.
Pelo contraio, não querem.
Mas também não desistem de se repetirem
nos gestos, palavras, significados.
Iguais ou parecidos todos os dias.
Até à saturação.
Depois, inevitável a rotura, a dois, a todos.
Com morte anunciada ou pressentida.
O cancro é o tema, o receio.
Mas também a perda progressiva da memória, dos outros, da vida.
É assim que desistimos.

Espantam-me essas casas fechadas sobre vidas vazias.
Olhá-las horroriza.
Vive-las seria consentir na morte
construída todos os dias até só restar o esgotamento.
Ou pior,
a ideia de que a felicidade existiu um dia.

Ou terá existido?
Algures, recuando no tempo e nas memorias,
outros que não estes partilharam a cama, o prazer, a doçura.
Atraíram-se corpos.
Esgotaram-se desejos.
Fora da casa,
em janelas abertas para a vida,
rostos sorriram,
mãos acenaram,
crianças choraram ou não.
São imagens que o tempo ancorou nas pedras,
vozes que as cores aprisionam ainda.
Do prazer de outrora, nada.
Nada que valha a pena, pelo menos.

Haverá sempre, é certo, a memória teimosa
que insiste em dizer que existiu,
que esteve presente,
que viveu o que outros vivem e não confessam.
Mas é memória de velhos,
carnes onde a doença se instalou, definitiva.
Impossível ver aí o brilho de outrora,
a luz que bania a escuridão,
a madrugada que antecipava o dia.

Nem recriando o amor seria possível.
Quanto mais olhando sem receio, desprevenidos.

Nos cantos da casa instalou-se a sombra, o pó, o silêncio.
Passos pequenos anunciam a noite.
Outros, mais breves, vidas que por ali passaram,
que foram importantes.
Nas vitrinas dos armários seres vagos, reflexos,
símbolos cujo significado ficou lá longe,
esquecida a razão pior ainda a importância.
Somos isto.

Valerá a pena erguer casas, muros,
quintais fechados sobre o abandono dos que ali amaram um dia,
antes de se perderem para o desejo dos outros, de si próprios,
sobretudo da descoberta incessante
do terrível mistério que o dia seguinte encerra sempre,
e por isso vale a pena vive-lo?
Como sabe-lo?

Do outro lado da rua mantêm-se o mistério,
agora insolúvel.
Deste lado, imagino que o mesmo.
Afinal são reflexos num espelho, não são realidades.
Se o fossem não duvidariam.
Não acautelariam sensações, emoções.
Abririam braços, vidas, memorias ou deslumbres.
Corpos tombariam rendidos ao prazer ou à dor.
Não se fechariam em casas de janelas sem luz.
Muito menos em vidas vazias.
Para horror de todos nós.

Setúbal, 7 de Maio de 2010
JC