Do outro lado da rua teimo em ver quem lá não está,
nem estará nunca.
Estará, isso sim, quem ignoro que exista.
São pessoas, eu sei.
Na verdade desconhecidos.
Não que algum dia tenham sido, ou pudessem ser, conhecidos.
A menos que abríssemos mão do intimismo,
coisa impensável de resultados imprevisíveis.
Às tantas, surgia-nos de repente a tentação de sermos íntimos.
Como esses romances de cordel
que andam por aí a desmontar lares muito vistos.
Na verdade gastos.
E por isso, sim, é um bem que lhes fazem.
Não que as mães de família o queiram.
Pelo contraio, não querem.
Mas também não desistem de se repetirem
nos gestos, palavras, significados.
Iguais ou parecidos todos os dias.
Até à saturação.
Depois, inevitável a rotura, a dois, a todos.
Com morte anunciada ou pressentida.
O cancro é o tema, o receio.
Mas também a perda progressiva da memória, dos outros, da vida.
É assim que desistimos.
Espantam-me essas casas fechadas sobre vidas vazias.
Olhá-las horroriza.
Vive-las seria consentir na morte
construída todos os dias até só restar o esgotamento.
Ou pior,
a ideia de que a felicidade existiu um dia.
Ou terá existido?
Algures, recuando no tempo e nas memorias,
outros que não estes partilharam a cama, o prazer, a doçura.
Atraíram-se corpos.
Esgotaram-se desejos.
Fora da casa,
em janelas abertas para a vida,
rostos sorriram,
mãos acenaram,
crianças choraram ou não.
São imagens que o tempo ancorou nas pedras,
vozes que as cores aprisionam ainda.
Do prazer de outrora, nada.
Nada que valha a pena, pelo menos.
Haverá sempre, é certo, a memória teimosa
que insiste em dizer que existiu,
que esteve presente,
que viveu o que outros vivem e não confessam.
Mas é memória de velhos,
carnes onde a doença se instalou, definitiva.
Impossível ver aí o brilho de outrora,
a luz que bania a escuridão,
a madrugada que antecipava o dia.
Nem recriando o amor seria possível.
Quanto mais olhando sem receio, desprevenidos.
Nos cantos da casa instalou-se a sombra, o pó, o silêncio.
Passos pequenos anunciam a noite.
Outros, mais breves, vidas que por ali passaram,
que foram importantes.
Nas vitrinas dos armários seres vagos, reflexos,
símbolos cujo significado ficou lá longe,
esquecida a razão pior ainda a importância.
Somos isto.
Valerá a pena erguer casas, muros,
quintais fechados sobre o abandono dos que ali amaram um dia,
antes de se perderem para o desejo dos outros, de si próprios,
sobretudo da descoberta incessante
do terrível mistério que o dia seguinte encerra sempre,
e por isso vale a pena vive-lo?
Como sabe-lo?
Do outro lado da rua mantêm-se o mistério,
agora insolúvel.
Deste lado, imagino que o mesmo.
Afinal são reflexos num espelho, não são realidades.
Se o fossem não duvidariam.
Não acautelariam sensações, emoções.
Abririam braços, vidas, memorias ou deslumbres.
Corpos tombariam rendidos ao prazer ou à dor.
Não se fechariam em casas de janelas sem luz.
Muito menos em vidas vazias.
Para horror de todos nós.
Setúbal, 7 de Maio de 2010
JC
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
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