quinta-feira, 28 de julho de 2011

Amar


Amar é transcender os limites da carne a quem as asas ainda não nasceram.

Ou nasceram e não demos conta.

Dezembro 2004
JC

Não estamos sós


Não estamos sós. Em redor, tudo e todos a tentar erguer um muro à sombra do qual viver e morrer. O problema é não estarmos sós. E depois ter de escolher entre a solidão com outros ou sem eles. Mas sem eles é ainda com os seus reflexos dentro de nós.

Dezembro 2004
JC

Bruma


Mais não sabemos que erguer castelos inexistentes e palácios feitos de bruma. E depois sonhar com a princesa que, vinda do outro lado do nada, nos acorde desta luz e sombra conjugadas. Mas os castelos são o nosso receio, os palácios a imaginação que não cabe no redil da razão, e as princesas os passos a custo dados até esse limite ignorado que nos separa dos outros e de Deus.

Dezembro 2004
JC

A luz


Somos mais do que vemos, sendo o que vemos mais do que imaginar podemos, e isto mais ainda do que outros, vindos antes a abrir caminho, imaginaram de si próprios e do mundo. Tudo cresce mesmo quando decresce, porque decrescer é ainda experimentar. E o mundo sedimenta-se, camada após camada, até se tornar um altar onde a luz tome conta de tudo. Então a obra pode ser partilhada e cada parte realizar-se amplamente. E isto é a ceia que ainda não foi dada, mesmo que Cristo se tenha oferecido em sacrifício, dizendo-nos qual o caminho.

Dezembro 2004
JC

O ser


Da dor à verdade que dista? Nada ou só esta ausência de ser. Mas o ser é e está para lá da vida. É preciso pormo-nos de lado e observar o que fazemos, mas também é preciso estar lá e pouco a pouco ganhar as asas que nos fazem livres. Muitas coisas são essenciais ao ser, e umas fazemos e outras não. Mas o ser permanece coeso.

Dezembro 2004
JC

Cada dia


Que fazer da vida senão somar um passo cada dia. E depois de tudo se saber ou adivinhar, dar isso ao mundo, para que os passos de todos sejam mais, sempre mais. Até não haver passos para dar mas apenas Deus dentro do homem e o homem consciente disso.

Dezembro 2004
JC

A dor


Na dor dos outros remimos a nossa por existirmos separados deles. E eles, se nos acolherem, transcendem a própria. Até só restar a obra por fazer e o homem por consciencializar quem é e ao que veio.

Dezembro 2004
JC

A ponte


Entre o homem e a sombra a ponte que é Deus, a palavra que se assume transcendência se for dada ao mundo, ou imanência se ficar restrita. E o coração oscila entre dar-se e retrair-se, em ser dos outros e perder-se neles, ou ficar preso na ideia de uma serenidade possível.

Dezembro 2004
JC

Imaginação


Que sabemos do que somos senão o que vamos erguendo a esforço dos braços e tentativas da imaginação? E se a obra não termina nunca, é porque o ser é sempre maior do que imaginar podemos. Começa em Deus e nele acaba, ou nem isso: porque Deus também é uma obra que se realiza todos os dias.

Dezembro 2004
JC

Sinais


Muitos sinais houve já. Uns vistos outros ignorados. Porque? Porque nem tudo convém saber. Há obras que só são possíveis porque os obreiros ignoram o dia seguinte e o preço a pagar para lá chegar. Assim vão, quais cordeiros, ao encontro do altar. E o altar sacrifica-os e eles redimem-se. Mas se soubessem talvez não fossem e a remissão ficaria adiada. Ora o importante é a remissão: sacrificar é apenas mudar os olhos de um lado para o outro. E antes não se sabia e agora sabe-se. Que mudou? Mudou o ser e com ele o mundo. E isto vale a pena.

Dezembro 2004
JC

O outro


O outro será eternamente ele se não estender a mão ao encontro do segredo. E nós o mesmo. É preciso caminhar noite dentro sem outro consolo que os passos dados e o caminho percorrido. Não em nome de uma descoberta que é sempre tardia ou inexistente, mas porque não sabemos fazer outra coisa, nem vemos no mundo algo mais que valha a pena.

Dezembro 2004
JC

quinta-feira, 14 de julho de 2011

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Eu sou como a árvore que entrega os seus frutos. Eu simplesmente dou. Se aqueles a quem me dou merecem esse fruto, o seu prazer e o meu são imensos. Se o não merecem o seu prazer é proporcional ao seu merecimento mas o meu continua igual ao que sou. Porque eu sou uma árvore que dá os seus frutos a quem os quer sem perguntar a quem estende a mão: tu és digno de colher? E mesmo que me respondesse, que faria eu com a sua resposta. Recusava-lhe os meus frutos por ser menos digno. Com que direito. A árvore dá da si. As criaturas estendem a mão e colhem. É a troca da vida. É a troca possível. Mais do que isto era entrar no jogo do merecimento, que é uma regra do homem para decidir quem tem direito a quanto e ao quê. Jogo que alguns homens acreditam justo e por isso o mantêm como a regra das suas vidas. Já a arvore continua a dar de si e os seus frutos alimentam o justo e o injusto. São duas medidas, cada uma com a sua veracidade.

2 de Julho de 11
JC

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O lugar do amor


Sonhar ofusca.
Sonhar repetidamente com o amor torna-o possível.
E não é. Nunca foi.
O outro foi sempre um estranho.
Mundos distintos que só na palavra amor parecem coincidir.
Pois bem, não coincidem.
O motivo é a distancia intima.
No fundo, a estranheza.
O outro é sempre o muro intransponível.
O amor que lhe temos,
a absoluta incerteza.

Porque lho temos é que dá que pensar.
Mas a lógica do amor não é a da vida.
É outra coisa, é um murmúrio cá dentro.
Depois, a tentação é sempre o outro.
Toca-lo, o desafio.
Não por ele, todavia, mas pela parte nossa que só com ele é possível.
Alcançá-la, recuperá-la ao abismo, a suprema tentação.
O desejo.

Que busca a alma nestes encontros fortuitos?
O outro dentro de si, certamente.
O outro, porque com o outro algo renasce,
a vida torna-se de novo possível.
Também o espelho, pela mesma razão.
Por fim a lógica da partilha.
Sentir uns lábios doces é recuperar o milagre do amor,
abraça-lo é regressar ao paraíso.
Tão simples e tão estranho este mistério.
E só o outro o torna possível.

Esta noite,
saída das sombras da memoria, Euridice
o seu amor ausente de repente presente,
os seus lábios de novo vivos, quentes, sedosos como veludo.
De onde me veio esta ideia de a ter?
Porque caminhos estranhos à vida, alheios ao prazer, nos tocamos?
Afinal entre nós nunca houve mais que palavras minhas, gestos seus.
Um mundo de diferenças. Assumido.

Hoje não.
De repente éramos os amantes que nunca fomos.
Como se os sonhos fossem uma vida à parte,
um lugar de encontros para gente que deste lado desistiu.
Não por querer, mas por ter sido assim.

A Euridice de João não é a do mundo.
São realidades independentes.
Se coincidiram esta noite
foi porque a alma transpôs o abismo
e tornou real a quimera.
E no entanto, nos braços da amiga,
João recuperou a ideia de ser feliz.
Foi feliz enquanto o sonhou durou.
E acordado para a realidade da ausência,
algo desse sonho veio com ele, está agora aqui.

Quantos somos e em que realidades paralelas existimos?
Os outros o mesmo.
A única verdade da vida é a omnipotência de deus,
a sua transcendência.
Por inerência, a nossa, parte sua,
realidade que fez existir para sentir do lado de cá
aquilo que o amor é com outros.
E que só com eles se torna possível.
Mesmo que impossível, ou sobretudo então.

Terá sido a impossibilidade de amar Euridice que a trouxe de novo,
desta vez real no amor que João lhe teve
que porventura lhe terá ainda?
Trouxe-a ou não a trouxe.
Talvez o lugar destes encontros seja o lugar do amor,
não um lugar no espaço ou no tempo, mas no sentimento.
Sendo o sentimento a razão do encontro.
A sua finalidade.

Setúbal, 14 de Março de 2011
JC