segunda-feira, 4 de julho de 2011

O lugar do amor


Sonhar ofusca.
Sonhar repetidamente com o amor torna-o possível.
E não é. Nunca foi.
O outro foi sempre um estranho.
Mundos distintos que só na palavra amor parecem coincidir.
Pois bem, não coincidem.
O motivo é a distancia intima.
No fundo, a estranheza.
O outro é sempre o muro intransponível.
O amor que lhe temos,
a absoluta incerteza.

Porque lho temos é que dá que pensar.
Mas a lógica do amor não é a da vida.
É outra coisa, é um murmúrio cá dentro.
Depois, a tentação é sempre o outro.
Toca-lo, o desafio.
Não por ele, todavia, mas pela parte nossa que só com ele é possível.
Alcançá-la, recuperá-la ao abismo, a suprema tentação.
O desejo.

Que busca a alma nestes encontros fortuitos?
O outro dentro de si, certamente.
O outro, porque com o outro algo renasce,
a vida torna-se de novo possível.
Também o espelho, pela mesma razão.
Por fim a lógica da partilha.
Sentir uns lábios doces é recuperar o milagre do amor,
abraça-lo é regressar ao paraíso.
Tão simples e tão estranho este mistério.
E só o outro o torna possível.

Esta noite,
saída das sombras da memoria, Euridice
o seu amor ausente de repente presente,
os seus lábios de novo vivos, quentes, sedosos como veludo.
De onde me veio esta ideia de a ter?
Porque caminhos estranhos à vida, alheios ao prazer, nos tocamos?
Afinal entre nós nunca houve mais que palavras minhas, gestos seus.
Um mundo de diferenças. Assumido.

Hoje não.
De repente éramos os amantes que nunca fomos.
Como se os sonhos fossem uma vida à parte,
um lugar de encontros para gente que deste lado desistiu.
Não por querer, mas por ter sido assim.

A Euridice de João não é a do mundo.
São realidades independentes.
Se coincidiram esta noite
foi porque a alma transpôs o abismo
e tornou real a quimera.
E no entanto, nos braços da amiga,
João recuperou a ideia de ser feliz.
Foi feliz enquanto o sonhou durou.
E acordado para a realidade da ausência,
algo desse sonho veio com ele, está agora aqui.

Quantos somos e em que realidades paralelas existimos?
Os outros o mesmo.
A única verdade da vida é a omnipotência de deus,
a sua transcendência.
Por inerência, a nossa, parte sua,
realidade que fez existir para sentir do lado de cá
aquilo que o amor é com outros.
E que só com eles se torna possível.
Mesmo que impossível, ou sobretudo então.

Terá sido a impossibilidade de amar Euridice que a trouxe de novo,
desta vez real no amor que João lhe teve
que porventura lhe terá ainda?
Trouxe-a ou não a trouxe.
Talvez o lugar destes encontros seja o lugar do amor,
não um lugar no espaço ou no tempo, mas no sentimento.
Sendo o sentimento a razão do encontro.
A sua finalidade.

Setúbal, 14 de Março de 2011
JC

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