terça-feira, 23 de junho de 2009

Eu vi-os perderem-se



I
Eu vi-os perderem-se, um a um
Lentamente apanhados pelo jogo

Primeiro jogadores
Depois matéria do jogo
Primeiro observadores
E depois jogadores
E por fim as cartas
Que se atiram sobre a mesa

Eu vi-os transformarem-se pouco a pouco
Em presas de outros jogadores
Por sua vez presas de outro jogo

Eu vi-os confundirem-se com os actos
E com as razões desses actos

Eu vi-os lutarem
Pela liberdade de serem jogo
Esquecidos já
Dessa outra liberdade, intima

Eu vi-os perderem-se, um a um
Nos motivos que invocamos para jogar

Eu vi-os e não sei esquecer


II
É por isso que falo
Na liberdade de ser homem
Apenas homem

É por isso que repito
Certas formulas abstractas
E tenho o cuidado de advertir
Contra a facilidade do engano e da ilusão
Quanto aos motivos para agirmos

É por isso que não descanso
Enquanto não levo ao caos
Para então, e só então
Te fazer ressuscitar


III
Tu estás cheio de motivos idílicos
E de razões idílicas
E de coisas certas e erradas
Estas cheio de aparências

É preciso que morras
Para poderes renascer
Mas para morreres
Tens de esgotar a aparência de tudo
Tens de destruir cada pequena coisa
No seu útero
E tens de voltar a essa caverna mil vezes
(Porque ela tem as suas raízes na tua alma)
Para destruíres continuamente
Tudo aquilo que te possa prender

Se não souberes matar
Não poderás dar a vida
É preciso que mates
E que morras quando matas
É preciso que te esgotes
E esgotes a fonte de toda a realidade


IV
Algures no mais escondido de ti
Está a razão de tudo
E tens de ir de espada em punho
Ceifar essa vida

Pouco importa que assimiles outros retratos
E outras verdades e outras mascaras
Que no fim de contas são sempre tuas

Tens de ir por caminhos solitários
E atalhos cheios de armadilhas
Até esse ponto
Centro teu e do cosmos vivo

E tens de não levar nada contigo
Nem certezas nem incertezas
Nem ideias nem razões
Tens de ir nu
Para que Eles te possam vestir

Aquilo que levares será aquilo que trazes
Se levares um deus contigo
Terás de o sacrificar no altar do mito
E se for contigo uma mulher
Terá de ser dada às feras
Por isso te digo
Não leves nada, vai tu apenas


V
É por isso que te falo em esgotar tudo
Em abdicar continuamente
Em não te confundires com nada
Mesmo com Deus
Deus sobretudo

Parece-te difícil a minha linguagem
Mas simples os meus motivos
E tens razão

Como poderia eu misturar-me
E estar afastado
Tudo ao mesmo tempo?
Por certo teria de descer e subir
E nem subir nem descer
Mas estar presente, apenas

Vem comigo para um lugar
Onde deuses e homens caminham de mãos juntas
E juntos são um
Que três sois no alto iluminam
E confundem


VI
Eu quero erguer-te
Mais alto que os picos mais altos
E mais fundo que os reinos do fundo
Ousariam estar

Mas tu estas de joelhos
Perante um deus de silencio e solidão
E não vês que ele não sabe de ti
Nem te procura

Tu não sabes que é destino do homem
Erguer-se das cinzas dos mitos
E conquistar a terra
Porque o tempo dos deuses
Há muito que chegou ao fim
E é a nossa vez de sermos adorados
E amaldiçoados por quem um dia há-de vir


VII
Eu falo-te de trevas e luz, juntas
E digo-te que é preciso invocar ambas
Ao mesmo tempo
Mas tu não me acreditas

Habituaste-te ao jogo que se joga na mesa
E não vês que nessa mesma mesa
Mil jogos se jogaram
E jogarão ainda
Mudarão os parceiros
Mudarão os rostos
E os motivos
Mudarás tu e ele e o outro
Porque o jogo que se joga nunca é eterno
Apenas o motivo ultimo e essencial
Para haver jogo e se jogar


VIII
Como dizer-te tudo isto
E levar-te a olhar de mais longe
Para o jogo e a mesa
E os jogadores e o movimento
Que os faz passar e não permanecer
Jogando e jogando-se

Por isso te digo que desças à caverna
E decepes o ídolo que alguém ergueu em ti
E te digo ainda que não leves nada
Porque tudo aquilo que levares trarás contigo
Transformado agora não em coisas
Mas tu mesmo
E sem saberes disso


IX
Quantos iguais a ti
Eu vi mergulharem profundamente
Propositadamente no útero
E nos rostos do útero
E nas aparências do útero
E já não regressarem
Senão transformados em útero

Como recordar-te que o mistério da vida
É o da aparência
E que é preciso estar nu
Por dentro e por fora
Para que nada se nos cole à pele
E nos mova e nos fira
E mova e fira outros
Porque testemunhamos na praça pública
E damos e vendemos coisas ao ciclo


X
Eu vi-os perderem-se um a um
Primeiro nas mascaras do mundo
E depois naquelas que imaginavam suas

Eu vi-os adoptarem poses estranhas
E sacrificarem o seu melhor inimigo
Para não perecerem
Vitimas do caos e da luz malditas

Eu vi-os bebendo dos charcos
Tendo ao lado um rio
E voltarem costas para não o verem

Eu vi-os e não sei esquecer


XI
Ah, como dizer tudo isto
E fazer-me entender?

Porque se lhes digo que matem
que é o mal que fala na minha boca
E se lhes digo que criem
que é o bem que fala por mim
E se lhes digo que o bem e o mal
São ambos necessários à vida
E que matar e criar é o mesmo
E que afirmar e negar é o mesmo
E que o homem santo
É igual àquele que
destrói os mundos
Abanam a cabeça e não me acreditam

Mas como poderia eu dizer-lhes isto
Se não o tivesse feito em mim
E fora de mim
Como poderia eu saber
E estar livre para olhar sem julgar
Nem condenar nem louvar nada
Se não tivesse feito a viagem até ao fim
E porque nada levei
Nada trouxe que me prendesse


XII
Ah, como dizer-lhes desta liberdade inútil
E deste viver para nada
Mas mais total e completo
Do que todas as formas de vida possíveis

Estou só perante a minha lucidez
E esta ferida que em cada dia
Cresce um pouco mais
Só para gozar uma liberdade
Que nada deve aos deuses
E que nada lhes dará em troca


XIII
E ergo-me para fazer e desfazer destinos
Único senhor das minhas lágrimas
Que a minha dignidade é vasta
E o orgulho não tem limites
Excepto os da morte
E mesmo perante essa
Não me rendo
Sem a tentar levar comigo para o limbo

Lisboa, Junho de 1981
JC

A deusa


Hoje a Deusa veio até mim
vestida de primavera beleza luz
e esse jeitinho tão feminino
de vestir de enfeitar
e de algum modo colorir o mundo
fazendo-o um lugar mais próprio para se viver.

Claro que tive de lho dizer logo ali
antes que esquecesse.
É que estes milagres são raros
e o simples facto de nos cruzarmos
com alguém que tem a beleza no horizonte,
faz uma enorme diferença.

Sorriu a agradecer.

Também eu sorri,
mas cá dentro,
lugar ignorado onde todas as tragédias se esgotam
onde todas as maravilhas encontram o seu fim.

Sorri e fui em frente sem olhar para trás,
não fosse o demónio da tentação
de possuir e guardar aquele momento,
guardando também a rapariga,
apossar-se de mim.

27 de Junho de 2008
JC